Há alguns anos, escrevi um pequeno artigo sobre a relação entre o futebol moderno e o "panis et circensis" romano. O tempo e meu antigo computador fizeram com que eu perdesse esse texto. Recordo apenas algumas intuições, algumas inquietações. Falava algo sobre as copas mundiais de futebol, sobre o dinheiro, sobre a diversão das massas. O tempo passou. Continuo concordando com as relações que fiz anos atrás. No entanto, acredito que devo acrescentar algo àquela linha de pensamento: a paixão.
Num dos diálogos finais do magistral filme argentino "O segredo dos teus olhos", na busca ensandecida por um criminoso, o protagonista afirma que um homem pode mudar de amor e de religião, mas jamais de clube de futebol. Fiquei atônito com a afirmação. Para um fanático, coisa que quem me conhece sabe que não o sou, a paixão por seu time é absoluta. Não se torce pelo esporte, torce-se por time de forma irracional. Agrada-me a definição italiana para torcedor: dizem que o torcedor é um tiffoso, ou seja, um acometido pela tifo, um doente incurável. Nesse sentido, toda a racionalidade crítica de resistir ao evidente binômio do pão e circo cai por terra. O tiffoso é vítima de sua própria paixão, torna-se surdo a toda investida racional. E o tentáculos mercantis não se fazem cegos a isso: investem todos seus tentáculos para transformar o padecente em consumidor voraz.
Nessa última semana que define o campeonato futebolístico nacional a coisa fica mais aflorada. Conversas sobre estatísticas, cálculos e rivalidades surgem de todos os lados. Para alguns, amar seu time torna-se coisa urgentíssima. O manto sagrado, leia-se camiseta do time, deve ser ostentado a todo custo. A torcida deve ser constante, com direito a promessa para todos os deuses.
Para além de toda sandice futebolística, o espírito crítico deve resistir. Em nome da dita "paixão nacional", nos bastidores dos grandes times e das confederações, conchavos espúrios são tramados, dirigentes de princípios éticos questionáveis perpetuam-se no poder, como Ricardo Texeira, o autocrata da CBF, isenções vergonhosas de impostos são dadas para construção de estádios privados de futebol enquanto a população amarga em filas de hospitais e de creches.
O futebol é maravilhoso. A paixão pelo meu time supera todas as palavras. No entanto, a sedução do "panis et circensis" deve ser sempre posta sobre suspeita.